Naturalidade: Castelo Branco (origens na aldeia de Roda, Cardigos, Mação)
Data de nascimento: 31/10/1927
Residência actual: Castelo Branco
Habilitações literárias/ nível de escolaridade: 4ª classe; Escola de Enfermagem Dr. José Lopes Dias, Castelo Branco
Série de entrevistas realizadas por Helena Cabeleira e Ana Isabel Madeira (gravada em registo áudio e audiovisual), Roda, Cardigos, Mação (02/03-08-2019; 13/16-08-2019) e Castelo Branco (03-10-2019).
[Realizada por Helena Cabeleira (02-08-2019)]
- Então o seu nome é Ana Cristovão?
- Sim. Eu quero dizer uma coisa. Uma vez um professor – um inspector – foi a uma escola e queria saber como é que os alunos estavam e interrogou alguns. E interrogou um, e diz assim…no meu tempo era assim: “diz lá o reinado do Dom Afonso Henriques”. E nós, começávamos a desatar por ali a fora. E então virou-se para um deles e disse: “Diz lá o reinado do Dom Afonso Henriques”. E ele nada. E depois ele ficou assim muito espantado de ele não saber. E depois diz o professor dele: “Diz lá o reinado do ‘andando’”. Andando do Dom Afonso Henriques…e por ali afora, por ali afora. Disse o reinado do Afonso Henriques!
- E começava logo assim!
- (risos) É, e eu sou exactamente assim. Eu sou mais para falar do que para ler….para ler e
compreender o que está lido. - Está bem, está bem. Não há aqui respostas certas nem erradas, nós temos um guião, porque temos que ter uma estrutura para nos orientarmos, porque queremos saber determinadas coisas, mas também se a pessoa tiver outras para dizer ótimo!
- Ah, quer dizer, é dentro de um determinado conteúdo?
- É, até um determinado ponto. Depois as pessoas vão dizendo aquilo que acham importante, do que é que se lembram. Porque isto também varia, porque cada pessoa tem uma experiência diferente. E nós queremos registar. (…) Diga-me o seu nome, se possível completo.
- Ana da Silva Cristóvão Afonso
- E a naturalidade?
- Castelo Branco…a minha ascendência é toda daqui, da Roda, e daqui destas áreas.
- A sua data de nascimento?
- 31 de Outubro 1927. Faço agora os 92.
- É casada, solteira?
- Viúva.
- Nós queremos ter a identificação das pessoas com quem nós falamos, mas também há pessoas que podem querer responder às perguntas e não darem os dados delas, pode ficar anónimo.
- Não, não, não, não tem importância nenhuma.
- Tem e-mail a dona Ana?
- Tenho sim!
- Então diga lá…a dona Ana é mesmo uma pessoa deste tempo! (…) Frequentou a escola?
- Sim, até à instrução primária toda. E depois parei. Depois frequentei a escola de enfermagem.
- Então quantos anos é que andou na escola, ao todo?
- Na escola primária 4 anos, e depois na escola de enfermagem foi só 1 ano…nos cursos especiais que foram criados por um médico. Eu acho que foi o homem maior que passou por Castelo Branco…foi aquele. Ainda hoje existe esta escola Doutor José Lopes Dias, era médico, lá em Castelo Branco.
- Mas fez os 4 anos da escola primária?
- Fiz, e depois havia a escola para enfermeiros e para enfermagem auxiliar, e também para auxiliares sociais. Foi criado por ele, tanto a enfermagem auxiliar como a social durou 1 ano, e eu inscrevi-me na social, porque eu gosto do serviço social. E colocaram-se tanto as enfermeiras auxiliares como as sociais, empregaram-se tal e qual como os outros, apesar de ser um curso só de um ano…e eu estive 4 anos a exercer.
- Isso foi em que ano?
- Olhe, eu tinha 24 anos, tenho 91, faça-lhe as contas…que eu não sou boa para fazer contas. E eu fui tirar, realmente, nem foi para me empregar, porque eu sempre gostei de estar em casa. Eu fui…acabei por ser doméstica…e eu fui tirar o curso para ter mais algum conhecimento e até para poder fazer bem aos outros. E fui para esse curso… e nós éramos 16 da enfermagem auxiliar e 16 de serviço social auxiliar.
- E então foi a primeira turma que foi criada?
- Terceira…e acabou o meu curso…o social acabou nesse ano. Foi o último, foi só 3 anos. E as outras passaram da enfermagem auxiliar e foram tirar depois a geral. Porque havia também enfermagem geral, que eram 2 anos. A geral era no segundo ano de antigamente. Juntaram as auxiliares com as de enfermagem. Eu dizia assim: “aquilo é para aquelas”. Eu não tinha vocação para isso…mas para o serviço social até tinha. E depois pronto, acabou, acabou o curso. Passado algum tempo eu perguntei se havia possibilidade de arranjar emprego, mas não havia. Passado pouco tempo houve uma que acabou o curso, até com menor classificação do que eu, e depois havia em Alcains um hospital que foi criado por um casal que não tinha filhos e deixou a casa deles para o seminário. Porque há lá um seminário que eles fizeram de raiz, a casa, e então, como eles não tinham filhos quiseram doar isso à terra. E depois eles acharam que seria o seminário, quer dizer, a continuar. Porque isso só foi feito depois de eles falecerem…o hospital…e havia duas enfermarias…e nessa altura eu estava em casa e perguntaram-me se eu queria ir. E eu nunca quis exercer enfermagem, mas não fui capaz de dizer que não. E depois, dado o fim para que aquilo era… aquilo era para os pobres, só era para os pobres. E depois estive lá 4 anos.
- Lembra-se do nome desse casal?
- José Pereira Monteiro, zona de Alcains, a 10 km de Castelo Branco. E então estive lá 4 anos, mas eu como não tinha vocação, realmente…quando à parte que me competia, da minha obrigação, procurei cumprir a minha obrigação. Do serviço social eu gostava. Mas estive lá sozinha…porque também o hospital era só para curar doenças vulgares, uma pneumonia. Portanto, o que lá se fazia eram injecções, essas coisas. A família tinha deixado aquilo aos padres, porque achava que eles eram capazes de ir com isso até ao fim. Criaram-se lá coisas mas acabou tudo. Aquilo também acabou, mas não foi da vontade deles talvez…
- Quantos anos esteve lá?
- Não sei…estive lá no primeiro ano, depois fui embora. Depois foi para lá outra. Entretanto, a outra adoeceu e eu fui lá só para a outra não perder o emprego. Tudo somado estive lá parece-me uns 4 anos. E depois disso ela esteve lá, não sei, se 4 anos e depois ficou na casa do povo, depois ela acabou por ficar em Alcains.
- Isto são conversas e histórias embrulhadas umas nas outras. Então dona Ana, para a gente não perder muito aqui o rumo… eu queria saber dos seus pais, se os seus pais tinham escolaridade. O seu pai e a sua mãe tinham escola?
- Eu não faço ideia se o meu pai seria até o primeiro a fazer o exame o exame de instrução primária. Eu não sei. Andou 5 anos na escola. Naquele tempo…como é que eu hei-de dizer…não foi por falta de passagem…era assim…não havia tempo de escola. O professor quando entendia…e o professor era o padre da freguesia, aqui em Cardigos, na Roda não havia, era em Cardigos…e o padre é que era o professor e ensinava os alunos. E depois, quando ele entendia que os devia levar a exame, levava. O meu pai era muito inteligente, e então quando o padre ia fazer casamentos…isso fazia-se a qualquer hora, agora vão à missa e assim, mas ali era em qualquer altura, casamentos, batizados e funerais…o meu pai ficava a dar a escola aos gaiatos…aos colegas.
- O seu pai é que dava aulas aos outros? Enquanto o padre se deslocava? Não tem a noção se o seu pai foi dos primeiros a fazer a escolaridade para poder ensinar aos outros?
- Não era para poder ensinar. Quer dizer…ele ensinava porque sabia. Para alguns gaiatos não ficarem sem nada, o padre dizia: “olha, pergunta lá”…e ele ficava.
- Qual era o nome completo do seu pai?
- João Cristóvão.
- Era o nome dele, completo?
- Era, só tinha esse nome.
- E se ele fosse vivo que idade é que ele teria?
- Ele nasceu em 1892, eu penso que não estou errada. Eu tenho lá esses dados todos, na minha casa, e tenho da minha mãe. A minha mãe era 4 anos mais velha do que ele.
- Então acha que ele teria 5 anos…de instrução primária? Quanto tempo era a escola primária?
- Não havia…
- Mas ele fez o exame de instrução primária?
- Sim, foi fazer a Tomar. Eu fiz em Castelo Branco, naquelas aldeias próximas era em Castelo
- Branco, mas no tempo do meu pai era diferente do meu. Eu vinham fazer o exame a Castelo Branco, e ele ia fazer a Tomar, a uma freguesia que uma vez pertenceu à Vila de Rei.
- Então o seu pai ensinou uns gaiatos que haviam por aí, é isso?
- Não…era na escola, era dentro da escola. Como o padre não estava, e para eles não estarem distraídos, ou mandá-los para casa…então ele pedia para ele os ensinar a ler lá na escola. E nesse tempo já havia distinções, e ele no exame ficou aprovado com distinção. Agora acho que não há isso…mas naquele tempo havia.
- E a sua mãe?
- A minha mãe não sabia. Não foi à escola, e quem a ensinou foi ele. Ensinou-a ele na Fonte…numa pedra lousinha, que é uma pedra mais escura e depois com o próprio…outra pedra…é que escreveu. O meu pai é que lhe escreveu as letras que ela copiou, as maiúsculas e as minúsculas…
- Enquanto a namorava, ensinou-a?
- Não senhora! Ele gostava dela. Ela gostava dele mas não era para casar. Disse que o achava pequeno!…
- Mas depois ele ensinou-a a ler e a coisa lá foi, foi isso?….
- Isso…mas eu não sei, eu acho que não sei se estou errada, porque eu acho que isso não é possível, mas a minha noção é esta: que ela aprendeu tudo em oito lições.
- Aprendeu a escrever e a ler em oito lições?
- Mas acho que isto é exagerado, sabe…
- Mas de onde é que lhe vem essa ideia? Ouviu alguma conversa?
- A minha mãe contava. Eu fiquei sempre com essa noção, mas eu acho que isso era impossível…seriam 8 meses, e agora faço-lhe eu a pergunta?
- Pois…não sei!…(risos). Quem é que sabe isso?
- Mas a minha noção foi sempre esta: que em oito lições ela aprendeu…ele ensinou-lhe as letras.
- Provavelmente ele tinha algum método que usava para ensinar.
- Não seria um método, nestas idades, é a força de vontade…
- Certo, mas se calhar ele próprio chegou a uma conclusão. Como também ensinava outros meninos, outros rapazes lá na escola, se calhar arranjou ele próprio uma forma de ensinar rápido, ou tinha ali um sistema, fazendo como os professores agora fazem, na primária, para ensinar os meninos a ler…
- Mas eu tenho a impressão que era ela. Era ela…a vontade que ela tinha de aprender. E olhe que ela escrevia bem, ela escrevia raras vezes, mas chegou a escrever. Quando precisava de escrever, ela mandava-nos escrever a nós…a mim e aos meus irmãos.
- Então ela sabia escrever, mas mandava escrever quando precisava, era isso?
- Ela…houve alturas em que foi ela que escreveu. E olhe que com poucos erros…com poucos erros. Ela escreveu uma carta para um dos meus irmãos…mas como nós sabíamos mais do que ela, e ela estava ali muito devagar. E ler, ela até tinha um livro, o livro era a Imitação de Cristo, e ela dizia: “eu, quando estou aflita, abro…abro-o ao calhas e recebo a consolação”. Ela dizia isto…”vem-me sempre uma consolação da aflição que eu tenho…”.
- Desculpe…recapitule lá essa história…
- Ela tinha um livro chamado A imitação de Cristo e ela abria o livro…e às vezes quando tinha qualquer aflição…dizia: “vem-me sempre uma consolação”…e portanto lia, lia isso tudo. Disse que quando estava grávida, e estava assim meio…quer dizer, o estado físico, psíquico não estava a ajudar nada…e foi ter ao pé do meu pai e disse: “ó João, estou tão aflita eu até penso que irei morrer…estou muito aflita”, e ele disse: “olha, vai ler o livro da imitação de Cristo” e “fui ler e pronto, tudo passou…”
- A dona Ana teve quantos irmãos?
- 3…éramos 3, um irmão e uma irmã.
- E ainda são vivos?
- A minha irmã faleceu…com 82 anos…faleceu há 10 anos.
- E o seu irmão quantos anos tem?
- 85
- E eles têm escola? Eles também andaram na escola?
- O meu irmão está licenciado em história e português…e a minha irmã era em clássicas.
- Acha que o seu irmão gostava de fazer esta entrevista connosco?
- Olhe…o meu irmão está a cair…se estivesse aqui e combinasse com ele: “Olha amanhã eu vou entrevistá-lo às 10:00”… ele amanhã não se lembrava disso. Mas isto ainda não há muito tempo (…). O meu irmão tem seminário e há todos os anos um encontro e ele veio cá para o encontro, e eu também fui, e a minha cunhada, aqui na Sertã.
- O seu irmão é casado e ainda são os dois vivos, é isso?
- Sim, ela é mais nova do que ele…e então, ele nessa altura já estava assim. Nestas idades, é de dia para dia…a coisa cai cai cai…não é assim? Agora, certas coisas, talvez ele até lhas dissesse como eu. Às vezes, quando eu lhe falo no antigo, ele sabe. É o sinal dos velhos…
- Diga lá essa frase…
- …é sinal dos velhos, é sinal de que se é velho…esquecem-se do presente porque só se lembram do futuro… é, é…do futuro não!…do passado!…sabe, às vezes estou a falar e estou a pensar que estou a dizer uma coisa muito certa e não… e não.
- Acontece a qualquer pessoa! A Ana tem filhos, não tem?
- 3, todas professoras.
- O seu marido? Há quantos anos é que a dona Ana é viúva?
- Foi em 1985, enviuvei…
- E o seu marido tinha estudos?
- Sim, mas não chegou a fazer o exame [da escola primária]. Mas andou muitos anos na escola…era assim. Ele correu não sei quantas escolas. E andava não sei quantos quilómetros e depois tudo aquilo…não sei, às vezes não iria, eu não sei. Ele andou lá talvez o tempo correspondente, mas não chegou a fazer.
- No fundo, não chegou a fazer o exame mas tinha a escolaridade, não é isso? Sabia ler e escrever?
- Sim, sim…
- A sua vida na escola…lembra-se do primeiro dia em que foi à escola?
- Penso que foi em 1935. Olhe, eu nasci em 1927 e entrei no dia 7 de Outubro, e fazia 8 anos no dia 31…e fui com a minha irmã, a minha irmã é que me levou. E matriculou. A minha irmã andava na mesma escola e tinha mais 2 anos do que eu. E ela que me matriculou.
- O qual era a escola? Foi em Cardigos?
- O meu pai estava empregado em Castelo Branco a minha mãe no dia do casamento foi para Castelo Branco…e pronto.
- Então, basicamente, as raízes que a dona Ana tem na Roda são dos avós e depois com o seu pai e sua mãe viveu sempre em Castelo Branco?
- Exactamente.
- Lembra-se do que aconteceu nesse dia de escola, no primeiro, lembra-se do que é que se passou lá, tem memória?
- Não tenho assim nada… só tenho…nos primeiros anos, a primeira classe e a segunda, foi para não gostar da escola. Não gostava da escola de maneira nenhuma…
- E não gostava porquê?
- Porque antigamente os professores eram uns monstrozitos às vezes (risos). Bem, a minha professora não era, eu até gostava muito dela porque as salas…havia uma em frente…e então, logo no princípio a professora da frente, ouvia-se a régua ‘traz traz traz traz’. E eu tive medo à régua. A minha professora batia muito pouco, mas mesmo assim eu estava sempre com medo. Foi professora da minha irmã e diz-me assim: “tu não dás à tua irmã pela sola dos sapatos”. Disse-me a professora, a mim…
- Disse-lhe a professora assim, e isso foi uma forma de a pôr embora…
- (risos) De me incentivar… (risos). E eu fiquei sempre…que não era esperta…sempre com esta convicção. Então, eu tinha muita dificuldade em decorar, em fixar, e o fixar é o decorar. Era uma coisa terrível, porque a tabuada, 3 e 2…5. Eu tinha de fixar o que era o 3 e 2, 5, mas nada me dizia o que era o 5…o 3 e o 2 que depois seria o 5. E então, naquele tempo, chamavam os alunos todos ao pé da secretária e tinham de dizer a tabuada: ”vá diz lá tu, e tu, e tu…”. E eu punha-me atrás de todas e ver se conseguia, enquanto elas diziam, se eu ainda conseguia apanhar alguma coisa. E sempre, não sei porquê, sempre com um certo acanhamento, e depois tinha receio que me batiam porque eu não sabia. E isso para mim era…era…uma humilhação. Há pessoas, eu tenho impressão, há crianças que talvez não se ralem. Às vezes havia umas como eu, que apanhavam, e eu estava convencida que elas não se ralavam com isso. Mas para mim não…para mim isso era uma humilhação! E eu com medo disso, e com medo de falhar e a achar-me que eu, realmente, não era esperta porque não decorava a tabuada. E depois deixei de gostar da escola, eu não gostava da escola. Mas lá ia indo. Mas isto foi na primeira e na segunda, na terceira e na quarta virou o bico ao prego. Ou talvez porque, dizem, o uso da razão vem por volta dos 7 anos. Talvez o fim do uso da razão, não sei…e eu nessa altura, pensava, talvez eu estivesse um pouco atrasada nesse campo em relação às outras. Mas depois, a partir daí, aquilo que eu fazia e conseguia aprender era pelo raciocínio. Porque o 3 e 2, 5 eu não racoci…raci…ai…
- Raciocinava…
- Raciocinava!…Mas, quando chegou à parte dos problemas ninguém me punha o pé à frente. Porque aí eu sabia, aí eu relacionava, e na interpretação da lição eu interpretava exactamente. E tinha memória visual também. Eu ainda hoje me lembro do principio de uma lição, não sei se era da quarta classe, se era da terceira ou da quarta classe, mas eu julgo que era da quarta classe…e eu estou a ver…havia o principio da história, e depois um novo parágrafo, havia um parágrafo, e eu estou a ver lá o parágrafo, tal e qual, e era assim: “que deliciosa tarde desse domingo de maio, como as madressilvas descendiam com os roxinóis trinavam lá no fundo esmeraldino vale, e já a lua cheia ia subindo no céu muito azul, quando a tia Mónica contou às crianças esta pequenina história”…e aqui o parágrafo e depois dizia: “era uma vez um príncipe, muito louro mas muito criança ainda”…e aqui já não sou capaz de seguir como antigamente seguia, mas sei o que é a história…que estava a dormir, e tinha um gibão pendurado no leito, na cama, e o rei entrou no quarto dele e viu que de lá, do gibão, saía uma carta, e leu a carta, e a carta era o pai a agradecer-lhe das economias que ele tinha feito e que lhe tinha mandado, e o que é que o rei fez? Pegou numas moedas de ouro e meteu-as dentro do bolso, dentro do bolso do pajem, e depois o pajem quando acordou e viu lá as moedas pegou nas moedas e foi levá-las ao rei, e ele disse-lhe: “olhe isso é o prémio dos bons filhos”…foi isto que o rei respondeu. Mais ou menos assim, a história é esta.
- Obrigada…olhe, pois…o que é que se diz a seguir a isto? (risos)
- Ah…da minha vida de escola…depois de fazer estes dois anos, terríveis para mim, os outros dois anos, a terceira e a quarta classe, uma coisa maravilhosa. Aquilo foi andar andar andar. E depois, eu sempre disse em casa que não queria estudar: “eu não quero estudar”, sempre disse isto. Sempre disse isto, e quando chegou a altura…
- Mas os seus pais não se opunham? Se a Ana quisesse estudar, estudava…
- Eles não me diziam nada. A minha irmã andava já a estudar, porque era dois anos mais velha, no liceu, e então a professora disse…naquela altura havia o exame, não era? E agora não, transita-se para o seguinte, e ela disse: “quem quiser ir fazer exame de admissão ao liceu diz e eu dou-lhe explicação” e tinha de ser, as professoras davam explicações…”e digam se quiserem”. E depois eu fui dizer ao meu pai…e disse “olhe, a professora disse isto”…”e o que é que tu dizes?”…”o meu pai é que sabe”. E eu queria. Porque realmente os últimos 2 anos sorriram-me, e eu queria. Mas disse “o meu pai é que sabe”…”então olha, fica assim”…qualquer coisa assim. Foi um balde de água fria. Eu não fui capaz de dizer “eu queria”, não fui capaz. E foi um balde de água fria que me caiu em cima, nessa altura.
- O seu pai perguntou à Ana e a Ana disse que não sabia?
- Que ele é que sabia… e ele depois disse: “Então pronto.”
- A Ana era a mais nova?
- Era a do meio…
- E então os seus irmãos disseram que queriam ir estudar, foi isso?
- O meu irmão mais novo foi estudar depois de o meu pai falecer. Foi ajudado por um padrinho e a minha irmã sempre disse que queria estudar. Mas o meu pai adoeceu e ela esteve no lugar dele parece-me que 2 anos. E depois a minha mãe disse que ela gostava muito de estudar, e depois o padrinho disse “ela que vá” e ela até se convenceu que ele pagava os estudos. Mas não pagou. Emprestou o dinheiro, pronto, já não foi mau. E depois ela foi estudar, mas nessa altura, portanto, a minha irmã ainda não tinha ido estudar. Ela vinha do liceu e mostrava-lhe as notas, e ele ficava todo vaidoso. Mas como depois ele adoeceu, e depois ele faleceu e ela esteve sem estudar, ou não sei se ela interrompeu os estudos…espere lá. Ela mostrava-lhe as notas do liceu, e ele até foi dizer aos patrões. E um dos patrões: “Ó João…”, e ele até dizia: “A minha universitária”, e mostrou as notas ao patrão, e ele: “Ó João, a gente também não deve ter tantas aspirações”, disse o patrão para o meu pai. O meu pai era encarregado na fábrica de cortiça, e eu até nasci dentro dessa fábrica, o meu pai tinha casa e eu nasci lá dentro desta fábrica, eu e a minha irmã.
- Ainda existe essa fábrica?
- Não, a fábrica acabou, mas eu passo lá sempre perto, quando vou com as minhas filhas de carro. E entrei lá. Se eu não soubesse que a casa tinha sido lá, tinha existido, eu não sabia. Está tudo cheio de silvas e não há jeitos de casa nenhuma. A casa dele está em ruínas. Se eu não soubesse que era ali naquele sítio, eu não sabia que era a casa dele. Foi isso, e depois quando o meu pai faleceu ela não foi estudar e então depois disso é que esteve dois anos sem estudar, nos últimos tempos de vida: “Se quiser eu vou para o seu lugar, eu vou trabalhar para o seu lugar.” E os patrões aceitaram, radiantes, e queriam que ela lá ficasse.
- Então ela trabalhou na mesma fábrica que o seu pai?
- Enquanto o meu pai estava doente e depois quando o meu pai faleceu a minha mãe calhou a dizer ao padrinho que ela gostava muito de ir estudar, “A minha afilhada que vá estudar, se ela quer que vá”, e a minha mãe convenceu-se…
- Então o seu irmão era mais novo do que a Ana?
- O meu irmão entrou no seminário e depois do Seminário é que foi estudar. Completou todo o curso do Seminário, faltou a ordenação, mais nada.
- Olhe Ana, vou voltar só um bocadinho atrás. Não se lembra mesmo nada do primeiro dia de escola, nem o que é que levava vestido, nem que material levou?
- Coisas muito pequenas. Uma saquinha, assim mais ou menos deste tamanho, era deste pano das sacas, que havia umas sacas na altura, em juta ou como isso se chama, não sei.
- Serapilheira?
- Serapilheira…exactamente. Era uma saquinha dessas, e a minha irmã na escola já tinha assim uma malinha… nos últimos anos. Andei 2 anos com ela na escola ainda. E então ela tinha uma malinha já de cartão, diferente de mim. Eu achava também que era assim um bocadinho…tinha um bocadinho de ciúmes dessas coisas (risos). Ela já tinha isso, e eu fui com a saquinha. Ela também já tinha ido, mas pronto (risos). Mas olhe, antigamente havia muito pouca coisa…
- Mas o que é que levou de material, lembra-se? Um lápis, uma caneta, o que é que havia nessa altura? Uma lousa?
- Era uma lousa! E era um lápis também de lousa.
- E não guardou, não tem nada dessas coisas, não?
- Eu não guardei…existe uma lá em casa que deram a minha irmã num encontro de colegas. (…) Por exemplo, um tio meu que foi para Moçambique, talvez dos primeiros daqui, que daqui saíra, há uma fotografia dele, ele trabalhou nas minas…é uma coisa que tem uma espécie de binóculo, aumenta, e depois põe-se aqui à frente e a pessoa fica…
- Em 3D?
- Exactamente. Talvez até tenha outras coisas e lembranças.
- Vá pensando nisso… fotografias de escolas ou de sítios.
- Eu até tenho o diploma do meu pai. Ainda há pouco tempo aquilo estava na casa dos meus pais e isso andou lá a dar voltas, e apareceu aquilo e uma filha minha, a mais nova, disse logo “É para mim” e está encaixilhado. (…)
- Não se lembra da escola, como é que era?
- Perfeitamente. Em Castelo Branco, no Cansado.
- Ainda funciona essa escola?
- Não. Já há muito tempo, eu não sei o que fizeram à escola. Não sei se está lá alguma coisa. Não faço a mínima ideia. Aquilo é um bocadinho distante da minha casa. Era o Cansado, o Cansado…porque era a escola do Cansado.
- Mas como é que era a escola? Consegue lembrar-se disso? O edifício, a estrutura, era pequena, era grande, tinha salas, era uma casa…?
- É destas escolas, há aí muitas iguais. Mesmo iguais. Nem sei se era ali em Chaveira. Mas olhe, é muito simples, eu vou lá e tiro a fotografia, ou peço às minhas filhas e elas tiram fotografia à escola.
- (…)