E1 – Memória

Introdução (3 Eixos)

A memória como matéria prima do conhecimento histórico

A história imaterial da escola é, com efeito, difícil de se reconstruir. A ambição de pô-la a descoberto é tão grande quanto o silêncio (e o esquecimento) que paira sobre a história das pequenas escolas do interior rural português. Durante praticamente todo o século XX, pouco se sabe a respeito do funcionamento destas escolas para além daquilo que os textos normativos, as monografias sobre instituições de ensino e as modestas taxas de alfabetização deixam perceber (ADÃO, 2007; ADÃO & MAGALHÃES, 2013, 2014; MADEIRA & SILVA, 2015). 

Desconhecemos, quase inteiramente, as representações da comunidade camponesa face à educação e à escolarização: da resiliência ou resistência no envio das crianças à escola; dos percalços na aquisição da escrita; da medida da proximidade (ou distanciamento) da comunidade face à cultura escolar; da relação dos ritmos da sociedade rural com as práticas escolares; das dificuldades inerentes ao trabalho do professor primário; do lugar das mestras na profissão docente; da gestão quotidiana das práticas da sala de aula; das inovações didácticas e curriculares; dos usos dados aos manuais escolares, e por aí adiante… 

O que sabemos é que, ao longo do século XX e por toda a Europa, a imposição à escala global da escola de massas foi encarada de forma variável desafiando um entendimento uniformizado da consciência colectiva, e revelando a existência de um vasto conjunto de saberes locais, conhecimentos e práticas do quotidiano que resistiram (se hibridizaram, modificaram, transformaram) face à imposição de um modelo, um sistema ou uma ordem. 

O “inventário” destes (des)conhecimentos no interior das escolas rurais constitui, portanto, uma tarefa central do projecto MRIR, contribuindo para acelerar uma agenda de investigação que conta já com algumas décadas (CERTEAU et al, 1997; CRUZ, 2016).

O projecto MRIR inscreve-se, epistemologicamente, numa história do tempo presente (BÉDARIDA, 1993, 2001) definida por um conjunto de temas e problemas que se reportam a um regime de historicidade próximo (HARTOG, 2013) e indissociável daqueles que o habitam, o escrevem e problematizam (IHTP, 1993; FRANK, 2001). Trata-se de uma história viva e em constante movimento na qual o passado, o presente e o futuro se entrelaçam e se reforçam mutuamente no diálogo interdisciplinar e na confluência com a filosofia, a antropologia e a sociologia (CHARTIER, 1993; HOBSBAWM, 1993; KOSELLECK, 2006). Mais concretamente, a história do tempo presente encontra as suas fundações no presente (NORA, 1978) na medida em estabelece um vínculo inevitável e um compromisso indissolúvel com as fontes e arquivos que constituem a memória e o esquecimento colectivos (HALBWACHS, 1994, 1997; LE GOFF, 2000; COOK, 1998; RICOEUR, 2007). 

Neste sentido podemos afirmar que a historiografia da educação num contexto memorial (CASPARD, 2009), ao consagrar-se ao trabalho histórico sobre a memória dos indivíduos e das sociedades, deixa de se constituir como ‘eixo menor’ ou ‘elo mais fraco’ de uma história que se pensa de forma linear (desde os grandes mitos ao pequeno recordatório) para passar a problematizar-se e a reconfigurar-se segundo uma temporalidade que privilegia os múltiplos tempos vividos nos níveis em que o individual se enraíza no social e no colectivo (linguística, demografia, economia, biologia, cultura). 

A utilização da metodologia das histórias de vida é particularmente importante para trabalhar a memória da escola encarada não apenas como fonte histórica, mas como um processo de formação da identidade pessoal e profissional (DOMINICÉ, 1990; NÓVOA, 1992; DUBAR, 1997). Nesta perspectiva, a história do passado escolar transforma-se num novo objecto de estudo, apercebido não apenas ‘a partir de dentro’ (como é que a escola era representada), mas também ‘a partir do exterior’ (como é que ela era percepcionada pelas as elites, pela comunidade, pela sociedade). Enquanto as memórias individuais podem ser compreendidas individualmente ou comparadas como fontes, a memória colectiva só pode ser estudada como um processo, uma vez que consiste numa reconstrução social do passado originada pela fusão entre a memória das experiências de escolarização (reportadas directamente pelos sujeitos) e as narrativas sobre a história da escola (subordinadas às políticas da memória).

No projecto MRIR, a mobilização do “método auto-biográfico” (NÓVOA & FINGER, 1988) e a vigilância crítica a que os procedimentos de (auto)análise obrigam o investigador (BOUDIEU, 1986), têm em vista alcançar objectos heurísticos específicos: queremos chegar à “consciência de si de uma comunidade” (HARTOG, 2013: 28) a partir de duas vertentes interligadas: 1) por um lado, a partir da construção de uma Memória da Escola (enquanto instituição educativa formal); 2) por outro, a partir do resgate de memórias sobre processos de escolarização, ou seja, memórias que se referem a actividades empreendidas num tempo e num espaço concretos, espaços e tempos esses que se definem, quer pela proximidade, quer pelo afastamento em relação ao tradicional espaço-tempo escolar. 

Trata-se, em suma, de produzir uma “memória sobre a escola” (MEDA & VIÑAO, 2017) que possa contemplar também (e sobretudo) a voz dos próprios sujeitos e daqueles percursos educacionais até agora desconhecidos ou simplesmente esquecidos pela cultura escolar. Ou seja: “o conjunto de teorias, ideias, princípios, normas, costumes, rituais, inércias, hábitos e práticas (formas de fazer e de pensar, mentalidades e comportamentos) sedimentadas no decurso do tempo sob a forma de tradições, regularidades e regras partilhadas no interior das instituições educativas” (VIÑAO, 2008: 22). 

Descodificar esta “gramática da escolarização” (TYACK & TOBIN, 1994), pressupõe uma incursão no interior das instituições educativas, particularmente no domínio da sua vida quotidiana e no âmbito das actividades de sala de aula, procurando compreender o funcionamento dessa “caixa negra” (YANES-CABRERA et al, 2017) a que raramente teríamos acesso a não ser através do recurso a um conjunto de metodologias histórico-etnográficas (história oral, relatos autobiográficos, prosopografias, etc). 

Interessa-nos particularmente estudar a internalidade associada às tarefas da escola – “normas que definem conhecimentos a ensinar e práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos” – e que não pode excluir a análise das relações (de paz ou conflito) que ela mantém, em cada período da sua história, com “o conjunto das culturas que lhe são contemporâneas: cultura religiosa, cultura política ou cultura popular” (JULIA, 1995: 353-354). São estas relações que nos permitem compreender os processos de apropriação e reprodução dos modelos culturais em circulação no contexto escolar, cujos efeitos vão muito além das taxas consagradas de monitorização dos sistemas de ensino (de abandono, de reprovação, de analfabetismo), e que mais não são do que um registo uniforme e abstraído de vários tipos de relação com a cultura letrada (RAMOS, 1988: 1112). O que temos visto até agora é, antes, uma espantosa variabilidade, heterogeneidade, em bom rigor, nos modos de relacionamento das comunidades e dos indivíduos com a Escola, ditadas não apenas por questões de classe social ou de expectativa familiar, mas com modos de ver e pensar a vida no isolamento e na inevitabilidade da realidade quotidiana do mundo rural de há 60 ou 70 anos atrás.

Metodologia

Para captar a natureza do nosso objecto de investigação – a cultura imaterial e material da escola – e a partir dessa recolha e sistematização promover a troca de aprendizagens sobre a história local, precisamos de colocar em marcha um conjunto de dispositivos metodológicos que se desenvolvem em fases distintas. 

Num primeiro momento, a natureza do nosso objecto centra-se em representações e recordações com forte carga valorativa, simbólica e experiencial, associada às vivências escolares, aos percursos de escolarização e à relação dos indivíduos e das comunidades com a cultura escolar. Enquanto reconstrução da memória (individual e colectiva) a história faz-se com base em testemunhos, que são formas da experiência e maneiras de ser no tempo e no espaço (RICOEUR, 2007). Para resgatar estas memórias – património imaterial – torna-se indispensável controlar de forma crítica os procedimentos da história oral sobre a matéria prima “testemunhos”, quer através da utilização das histórias de vida ou recorrendo a métodos biográficos, como as autobiografias, as memórias ou os diários (PINEAU & MICHÈLE, 1984; BOURDIEU, 1986; WIEWIORKA, 1998; JOSSO, 2002). 

No nosso país, a utilização da história oral como método de transformação dos testemunhos em fonte constitui uma prática consolidada. O trabalho de António Nóvoa, continua a ser um clássico sobre o emprego da abordagem biográfica na história da educação (NÓVOA & FINGER, 1988; NÓVOA, 1988b, 1992; 2001). A utilização da metodologia das histórias de vida é particularmente importante para trabalhar a complexidade da educação escolarizada (formal). Desta forma, no sentido de transformar estes testemunhos em fontes considerámos as metodologias da História oral tendo em conta a profundidade da informação e as características do nosso “arquivo vivo”, registando em suporte áudio o discurso directo dos actores cujo passado queremos resgatar (JOUTARD, 1998). 

Texto: Ana Isabel Madeira (2020)

Referências Bibliográficas

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Entrevista semi-estruturada: amostra populacional

A divulgação do projecto (informação e sensibilização) junto dos parceiros e populações locais constituiu o primeiro passo de entrada na comunidade, que nos permitiu avançar para a segunda fase do trabalho: recolha de testemunhos (Out.2018-Mai.2019). A partir do inventário dos equipamentos educativos e culturais existentes nos concelhos do PIS, considerámos prioritária a captação de voluntários para responderem ao Guião de Entrevista (semi-estruturada) entre os alunos que frequentavam as Universidades Seniores da região: US de Proença-a-Nova (com um pólo na Sobreira Formosa), US de Mação, US de Vila de Rei e Academia Sénior da Sertã. 

O universo da amostra (inicialmente previsto) compôs-se com mais de 100 indivíduos, com idades superiores a 60 anos de idade, residentes na área geográfica de incidência do projecto. Pelo facto de esta população (alunos das universidades seniores) possuir características que a distinguem, de algum modo, das classes populares e dos trabalhadores agrícolas dos concelhos visados pelo projecto (Mação, Vila de Rei, Proença-a-Nova, Sertã e Oleiros), decidiu-se pela inclusão de testemunhos de outros actores sociais pertencentes a freguesias e concelhos contíguos aos que foram delimitadas pela selecção territorial inicial. Assim, através de técnicas de amostragem pensadas ou intencionais, procurámos também incluir nesta análise os casos que foram sendo sinalizados como relevantes (quer para colmatar informações, quer para esclarecer situações não contempladas pelos testemunhos dos alunos das Universidades Seniores locais). 

Entre Julho de 2019 e Janeiro de 2020 foram realizadas 81 entrevistas (orais, manuscritas e/ou informáticas), entre as quais se contam 45 entrevistas orais (gravadas em registo audio ou audiovisual), sendo que as restantes foram respondidas por escrito, pelos próprios entrevistados. Entre o total dos 81 indivíduos entrevistados (33 homens e 48 mulheres), cerca de 47 indivíduos  (17 homens e 30 mulheres) frequentavam as universidades, academias ou clubes seniores da região do PIS, e responderam ao Guião de Entrevista (via oral, manuscrita ou informática), ou forneceram testemunhos escritos. 

Lista completa das pessoas entrevistadas 

O objecto central do Guião de Entrevista (semi-estruturada) consistiu em recuperar, por intermédio da reactivação da memória dos informantes, uma narrativa referida à experiência escolar de cada sujeito, com especial incidência nas memórias acerca da instrução primária. A organização desta narrativa esteve subordinada à obtenção de informação em quatro campos de problemáticas: 

1. O tempo-espaço da escola: O quotidiano da escola (a entrada nas aulas, o decorrer das lições, idas ao quadro, ditados e cópias, intervalos e recreios, pausas para alimentação); as temporalidades do calendário escolar (períodos escolares, calendários laico e calendário religioso, efemérides locais, tradições e festividades, rituais de passagem, férias escolares); temporalidades do modelo escolar e temporalidades sociais/comunitárias; relações rural/urbano, tradição/modernidade); o espaço físico da escola (inserção da escola na paisagem, edifício, equipamentos, materiais escolares – mapas, ardósias, lousas, lápis, pedras, carteiras, manuais -, símbolos, emblemas, imagens); 

2. O percurso de escolarização: Percurso escolar (enquanto aluno, professor(a), mestra, regente, director(a), auxiliar, etc.); Representações sobre os(as) professores(as) (imagem do professor, modos de relacionamento); representações acerca da educação, do ensino e da Escola (sentido atribuído à educação escolarizada no seio da família, expectativas em relação à escola e ao desempenho escolar; processos de ensino-aprendizagem); currículo; estratégias de ensino dos professores; dificuldades de aprendizagem experimentadas; castigos, punições e recompensas; prémios, concursos, distinções; 

3. As relações entre os modelos de socialização e as aprendizagens escolarizadas: relação da comunidade com a instituição escolar; concepção de Educação e de instrução; interacção da comunidade com a escola e com os professores/participação da Escola na vida da comunidade; concepções sobre género e idade no contexto das aprendizagens formais e na comunidade; relação entre pares em contexto escolar; coeducação; acção social escolar (modalidades, apoios, práticas comunitárias); relações da cultura letrada com a oralidade (lendas, contos, tradições locais); aprendizagens inter-geracionais; 

4. Os sistemas de transmissão de saberes extra-escolares: Percursos de formação experiencial alternativos (trajectórias de formação de adultos e sistemas de transmissão de saberes extra-escolares; ensino doméstico; ensino particular; ensino missionário).

Com o objectivo de complementar a informação relacionada com o Eixo Memória, para além das entrevistas (cujo protocolo acabámos de sintetizar) recorremos à metodologia das histórias de vida, solicitando um relato livre sobre a temática das experiências escolares e sempre que possível a organização (pelos próprios actores) de arquivos pessoais (provas, exercícios escolares, redacções, ditados, fotografias, cadernos escolares, correspondência, diplomas, etc.), bem como a realização de autobiografias em suporte escrito. A compilação, análise e interpretação desta documentação dará origem a uma publicação acerca do tema “Memórias da Escola”. 

Texto: Ana Isabel Madeira & Helena Cabeleira (2021)

Referências Bibliográficas