Introdução (3 Eixos)
Para um currículo de história local
Para além dos dois anteriormente referidos (E1 e E2), um terceiro aspecto do projecto MRIR está direccionado para a produção de Currículos de História Local e para a organização de um programa de Formação de Professores envolvendo os actores locais (cidadãos, especialistas em história local, professores e investigadores) e os parceiros institucionais (Universidades e Instituições de Ensino Superior, Associações de Desenvolvimento Local e Centros de Formação de Associação de Escolas). Aquilo que designamos como Eixo 3 – Educação, consiste, portanto, na produção de materiais (programas, currículos e módulos temáticos) associados ao ensino e à formação no domínio da história local. Para além da construção de currículos destinados ao ensino formal (ensino básico e secundário), este último Eixo do projecto contempla ainda produção de materiais susceptíveis de serem utilizados na promoção turística através da criação de conteúdos sobre história local associados a rotas e circuitos temáticos, articulando o turismo em espaço rural com a vertente histórica e cultural.
Tendo por base a exploração da memória e do património histórico local relacionados com a educação, o ensino e a escola em meio rural, entendemos aqui o Currículo de História Local como um exercício de cidadania activa e um móbil da aprendizagem ao longo da vida. A valorização da região e do local como fonte histórica, a promoção da identidade regional/local e o incentivo de aprendizagens intergeracionais em torno da temática das experiências de escolarização, permitem construir um espaço de participação cívica e (re)construção identitária que se articula, justamente, com o desenvolvimento do potencial humano ao nível regional e com o investimento em conhecimento transferível para a melhoria das condições de vida da população. Por outro lado, ao propor-se desenvolver um trabalho de investigação, produção de redes de conhecimento e aprendizagem (universidades, órgãos locais de governo, associações, estabelecimentos de ensino, cidadãos), o projecto MRIR abre a possibilidade de criar dinâmicas educativas inovadoras, potenciando a cidadania activa e a coesão de toda uma comunidade através da partilha de experiências culturais e educativas.
A conservação e estudo do património educativo disponibiliza à comunidade educativa possibilidades de enriquecimento curricular, transformando-se num recurso educativo importante para a docência através do desenvolvimento de actividades pedagógicas centradas na cultura (i)material e na história local (visitas de estudo, materiais pedagógicos, exposições, efemérides). Não esquecendo a importância da transferência intergeracional de ideias, rituais e práticas, no que diz respeito à formação de novos professores, que serão os futuros guardiões do património escolar (VIÑAO, 2012: 11).
Esta é, portanto, uma proposta curricular que visa potenciar as relações entre História, Memória e Património (LE GOFF, 1990), direccionando-as para a organização de um programa de formação de professores centrados na valorização do património (i)material e na promoção da identidade regional-local. Com uma forte componente de intervenção educativa e formativa, este é um currículo que enquadra as metodologias da abordagem histórica, etnográfica e sociológica da educação desenvolvida no âmbito das Comunidades Intermunicipais da Beira Baixa e do Médio Tejo, integrando um conjunto de parceiros institucionais – ou comunidades de prática (WENGER, 1998; WENGER, MCDERMOTT & SNYDER, 2002) – mobilizados no resgate da memória e da cultura escolar em meio rural.
Parte-se aqui de um entendimento do currículo como uma prática social, pensado em função de um contexto territorial e social específico, e envolvendo todos os seus intervenientes ‘locais’. Abre-se, assim, a possibilidade de criar dinâmicas educativas inovadoras, potenciando a cidadania ativa e a coesão da comunidade através da criação de redes de aprendizagem (CNE, 2002), e da partilha de experiências culturais e educativas no espaço público de educação (NÓVOA, 2009, 2020).
Ética, Política e Epistemologia: pessoas produzem currículos, currículos produzem pessoas…
O carácter territorial, colectivo e eminentemente social marca profundamente a matriz teórico-metodológica desta proposta curricular no domínio da História Local, ancorada na ideia de que o caminho privilegiado para a produção e disseminação do conhecimento é o da prática colaborativa e partilhada. Aprende-se participando em comunidades de prática, nas quais as identidades se vão construindo, através das respectivas trajectórias de participação, e à medida que se vão negociando os significados das próprias práticas.
Á semelhança do conhecimento, entendemos aqui o currículo como uma prática social, historicamente construída, negociada e partilhada. Todo o conhecimento curricular (bem como o nosso próprio conhecimento sobre o currículo) é simultaneamente teórico e histórico, na medida em que ele próprio é um produto (e um produtor) de pensamentos e práticas sociais, e situações históricas. Todo o currículo – bem como toda a teoria do currículo e do desenvolvimento curricular – é, antes de mais, uma produção (e um produto) cultural.
Para entendermos o currículo como uma teoria e uma prática socio-cultural é necessário focalizarmo-nos nos “sistemas de razão” que o produziram. Ou seja, considerar as regras e as normas que regem as práticas do currículo e do seu ensino. Por sua vez, estas regras e normas são historicamente produzidas, e funcionam como “teses culturais” sobre o modo como os sujeitos – professores ou alunos – devem pensar, agir, viver. Em suma, todo o currículo é uma ferramenta “política” através da qual os governos e os sistemas de ensino “desenham pessoas” (POPKEWITZ, 2009: 303). O currículo escolar é, portanto, o território onde ética, política e epistemologia confluem e se intersectam mutuamente (COSME & TRINDADE, 2012; MACHADO, 2006).
É também neste sentido que o conceito antropológico de teoria da prática (BOURDIEU, 1972), assume particular relevo neste contexto de produção, implementação e avaliação de um Currículo de História Local. A teoria da prática trata do modo como os actores sociais constroem e transformam, constantemente, o mundo em que vivem. Enquanto ‘constructo’ socio-cultural, o currículo é o resultado de relações éticas, políticas e cognitivas complexas e dinâmicas. Ele é produzido por (e visa produzir) sujeitos e efeitos específicos. Analisar o currículo como elemento estruturante não só do sistema de ensino mas, sobretudo, da formação contínua de professores, é tomá-lo como objecto de conhecimento produzido pela cultura escolar de uma determinada sociedade, mas também pelas pessoas e instituições que transmitem e transformam, permanentemente, a cultura e o património escolar. Na base da teoria da prática Bourdieuniana, está a ideia principal de que as pessoas e as instituições não são apenas moldadas e influenciadas pela cultura política, social ou educativa de que fazem parte, mas também transformam essa cultura e as suas estruturas estabelecidas. Essa ideia de uma relação circular e dinâmica entre as pessoas, as instituições e a sociedade é um aspecto fundador da teoria da prática e do modo como podemos pensar e/ou imaginar outros currículos escolares e outras modalidades de formação de professores.
Em articulação com o conceito de reflexividade (BOURDIEU & WACQUANT, 1992; BOURDIEU, 2001), a teoria da prática permite-nos adoptar uma atitude analítica, crítica e auto-reflexiva sobre os nossos próprios objectos e processos de conhecimento. Daí que a auto-reflexividade seja uma das principais condições de possibilidade da criação, implementação e avaliação de um Currículo de História Local que possa efectivamente contribuir, de forma situada e diferenciada, para o fomento de praticas pedagógicas partilhadas e para a consolidação do espaço público de educação.
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Metodologia
A última deriva de desenvolvimento do projecto MRIR (o Eixo 3 – Educação), é alimentada por três ideias fundamentais que atravessam a proposta de trabalho na sua globalidade:
– o conceito de redes de aprendizagem
– a construção de oportunidades de aprendizagem ao longo da vida
– a noção de espaço público de educação
Estas três ideias, tomadas de empréstimo a António Nóvoa (2009; 2014; 2020), encontram nas actividades explicitadas neste Eixo, a ambição de alcançar estes três objectivos: 1) construir redes de aprendizagem de base regional ou local; 2) criar situações favoráveis para a construção e partilha intergeracional de conhecimentos e experiências; 3) reforçar o diálogo entre comunidades de prática de modo a consolidar o espaço público da educação.
No fundamental pretende-se construir (em rede e em diálogo com os parceiros institucionais), um Currículo de História Local, destinado ao Ensino Básico e Secundário das escolas da região do Pinhal Interior Sul (Municípios de Mação, Vila de Rei, Proença-a-Nova, Sertã e Oleiros), envolvendo a participação dos respectivos Centros de Formação de Associação de Escolas (CFAE) destas zonas geográficas. Os nossos parceiros fundamentais nesta empresa são (além dos CFAE), os próprios directores, professores e alunos dos Agrupamentos Escolares locais, a Escola Superior de Educação de Castelo Branco (ESECB), o Instituto Terra e Memória (ITM) de Mação, e as instituições culturais implantadas no território: Bibliotecas, Museus, Associações. Além destes, um dos nossos parceiros privilegiados em todo este processo foram, desde o início da implantação do projecto MRIR, os diversos Clubes, Academias e Universidades Seniores existentes na região do PIS: Mação, Vila de Rei, Proença-a-Nova, Sertã.
Pretende-se que esta oferta curricular contemple temáticas relacionadas com as questões da memória e do património escolar em meio rural, ampliadas à temática do património arqueológico local, através da produção de materiais pedagógicos (currículos, programas e módulos de apoio ao ensino-aprendizagem), com o objectivo de sensibilizar a população local para a importância da comunicação intergeracional e para a preservação e divulgação desse património feito de pessoas, lugares e saberes ‘locais’. Na base desta nossa proposta de Currículo de História Local está o pressuposto de que a “responsabilidade pela Educação deve decorrer de processos deliberativos partilhados entre as várias entidades: universidades, órgãos locais de governo, associações, cidadãos” (NÓVOA, 2014: 183-184). Em conjunto com os investigadores e historiadores locais afectos ao projecto MRIR, propomos ainda que este Currículo de História Local possa contribuir para a criação de conteúdos sobre história e património local associados a rotas e circuitos temáticos, articulando o turismo em espaço rural com a vertente histórica e cultural.
Texto: Clara Cruz, Ana Isabel Madeira & Helena Cabeleira (2021)