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FOTOS FALADAS
(…)
– Nós escolhemos esta imagem como imagem do projeto…
– Este menino…eu até pus ali uma cruzinha, porque ele é o meu pai…em Pedrogão Grande. (…) Repare que era só masculina…só os miúdos é que iam à escola. (…) Eu posso-lhe emprestar isto. Isto fica na sua mão e depois dá-me quando não precisar. (…) Eu até lhe deixo este papel e depois lê isto com calma, mas eu acho que isto que a minha irmã me disse…isto é o que a minha irmã me disse. Ela é que me deu este testemunho, ela tem mais de dez anos que eu.
– Eu quero que me fale dessa fotografia. O que é que sabe dessa fotografia? Quem é que está aí?
– Aquilo que eu sei é que eram os meninos do 4º ano de Pedrogão Grande onde está também o meu pai. Portanto, da 4ª classe. Que é aquele ali.
– Como é que se chamava o seu pai?
– Acúcio Castanheira que depois foi médico em Proença-a-Nova cinquenta e cinco anos.
– E esta fotografia tem ideia de quando é que foi tirada?
– Tenho, porque eu sei a idade do meu pai. O meu pai nasceu em 1895, se ele aqui andava na 4ª classe, portanto 1895 aqui devia ser 1900 por aí.
– E sabe onde é que foi tirada essa fotografia?
– Mais…Então se ele nasceu em 95 foi para a escola pelo menos com, aqui já tinha passado uns dez anos, portanto por estas contas normais das idades escolares este ano aqui, 4ª classe, devia ser 1905/06 por aí.
– E em que sítio?
– Pedrogão Grande.
– Mas a escola?
– Primária.
– Era escola primária?
– Escola primária.
– O seu pai era de lá?
– O meu pai era de lá. O meu avô, pai dele, era o farmacêutico de Pedrogão Grande.
– E este senhor que está aqui de chapéu?
– É o professor.
– É o senhor professor. E era uma escola masculina?
– Para já aqui era só masculina, mas se houvesse feminina era separada, porque já no meu tempo também era. Porque repare aqui só há rapazes.
– E não tem ideia do nome deste senhor?
– Do professor não tenho.
– Nem há registos?
– Talvez a minha irmã Maria Ezequiel saiba. Penso que ela saiba. Talvez a minha irmã mais velha saiba. Embora esta fotografia sempre lá existiu em casa…é uma maravilha.
– É uma recordação…
– Já reparou que eles tinham um fatinho já como homem?! Olhe para os fatos deles. Está tudo de casaquinho e calças… Eu acho uma piada a isto. Já tudo tinha um fatinho de homens, de livros debaixo do braço. Meu Deus!…
(…)
– Estão aqui miúdos que não são do 4º ano. Este menino não é do 4º ano, este não é do 4º ano… Vê-se bem pelo tamanho e pela carinha deles. Aquele também não é. Portanto isto devia ser a turma que este professor tinha. Nós chegávamos a ter quatro classes. Quatro turmas. Quatro anos de escolaridade.
– Pois, eles todos têm tamanhos diferentes…
– Repare.
– É…portanto, eram idades diferentes aí, não é?
– O meu pai vê-se que é do 4º ano. Aqui era.
– O seu pai falava-lhe do tempo de escola dele?
– O meu pai fez os primeiros anos da escolaridade aqui e depois o pai dele, meu avô, alugou casa em Coimbra e a minha avó foi para lá com eles, com os três filhos para estudarem para a Universidade. Para continuarem os estudos. Primeiro o liceu e depois a universidade. O meu pai dizia que ia a pé para lá para Coimbra, atravessava a serra toda da Lousã a pé e depois apanhava um autocarro lá em cima, como é que se chama? No cimo da serra…Como é que se chama aquela…agora é uma cidade, uma terra grande…Pampilhosa! Ia a pé de Pedrogão até à Pampilhosa. A pé. E depois na Pampilhosa é que apanhava um transporte público…
– Em tempos de estudante já da universidade?
– Isso. Ele falava na diligência. Na diligência. A minha avó, mãe dele, é que falava muito quando depois já estava assim muito velhinha, que ela morreu com noventa e seis anos, quando a gente chegava ao pé e não reconhecia e ela dizia “Então, és o Acúcio?”, dizia ela para o filho, “Vieste na diligência? Vê lá, tem cuidado, não te molhes” quando a minha avó morreu, já velhinha, portanto o meu pai o transporte que apanhava era uma diligência na Pampilhosa, que era um transporte público.
– E aqui quando ele andava na escola primária, isto era lá perto da casa dele?
– Era, no Pedrógão Grande. A casa dele era ao pé da igreja, já lá não está, ainda a conheci…
– Mas sabe se a escola…
– A escola, o sítio da escola eu não sei, mas a minha irmã Maria Ezequiel sabe. Se lá for a Pedrogão ela sabe isso.
– A sua irmã vive lá?
– Não, vive na Marinha Grande. Mas já está velhinha. Está velhinha, mas tem uma cabeça maravilhosa. Acho que ela até se lembra mais das coisas do que eu. O chapéu do professor…(risos)
– Isto é impressionante…
– Agora o que a minha irmã Ezequiel diz aqui. A minha irmã trabalhou primeiro em São Pedro do Esteval, ela também é professora. Nós lá em casa somos quatro professoras. Somos oito filhos. Dois médicos, quatro professoras, uma enfermeira e a outra é…
– Todos os seus irmãos estudaram?
– Todos! Todos estudaram.
– Todos se formaram, não é?
– Mas o meu pai quando morreu não tinha nada. O dinheiro que ele tinha não chegou para pagar o funeral.
– Como assim?
– Verdade! Porque ele era médico aqui em Proença a Nova, mas naquele tempo não havia nem segurança social, nem nada, e ele para as pessoas não morrerem ia ver o doente, o doente não tinha como pagar, e ele é que pagava a medicação e outras coisas do género, está a perceber? As pessoas nem sabem…Nunca leu aquele livro que eu escrevi sobre a vida dele?
– Ainda não li. Não li.
– Tenho de lhe oferecer.
– Mas conte lá essa história. Tem de me oferecer um para o projeto. Para ficar no projeto.
– Ofereço!
– Com a sua dedicatória, pode ser?
– Sim, sim.
– Porque fala lá muito das coisas daqui…diz muita coisa da história de Proença. Eu quando o escrevi, escrevi-o mais…eu gosto muito da minha terra, são coisas que a gente nasce com esta…Nasci aqui e pronto…e cresci aqui. Mas eu escrevi-o, porque quando cá cheguei, depois casei para Angola, andei por lá muitos anos e quando aqui cheguei, depois da aposentação, havia muita deturpação em relação ao serviço do meu pai aqui. Uma deturpação tão grande que eu fiquei pasmada. De maneira que escrevi o livro, e no livro disse só tudo o que podia dizer e disse com verdade para não magoar ninguém, porque sei mais coisas que davam outros livros, mas como podiam magoar alguém não o escrevo. Está a perceber? Oh Deus…
– Eram outros tempos, não eram?
– Eram, minha filha…Tempos muito complicados…
– O seu pai no fundo foi um privilegiado, posso dizer, não é? Porque teve acesso a estudar, de alguma forma…
– Claro, porque o meu avô era farmacêutico, embora fosse igual ao filho porque também dava os medicamentos de graça na farmácia a quem não podia pagar, mas pronto. Ele tinha três filhos, os três foram estudar. Um morreu com a pneumónica, que já foi o meu pai que o tratou e morreu esse irmão. Portanto, vivos era o meu pai e o meu tio Armando só. Morreu outra irmã também quando eles eram ainda crianças.
(…)
– Albertina, diga-me só aqui então a legenda da fotografia, o que é que diz aqui no papelinho?
– Eu no papelinho não digo nada praticamente. Aí no papelinho…isto é princípio do século XX e depois aqui 1903/04, mas depois um ponto de interrogação, porque deve andar mais por volta de 5 ou 6…
– É uma estimativa…
– É uma estimativa. E o que digo cá é que está o professor e as crianças. Aqui reparei como vestiam, porque os nossos meninos agora não se vestem assim e o que é que aprendiam. O que é que aprendiam eu pus aqui uma nota do que aprendiam “Meu pai aprendeu na primária, que é um dos que está aqui, a declinações do latim, as equações que nós só aprendíamos no liceu.” Eu lembro-me que eu aprendi as declinações já no 5º ano. O meu pai dizia-nos isto. E as declinações no 5º ano e as equações creio que no 3º. As equações de matemática eram no 3º ano, acho que 3º ano. E eles aprendiam já isso na instrução primária. Também iam poucos estudar, é verdade, não é?…E eu escrevi aqui aquilo que o meu pai nos dizia…
Albertina Castanheira, em entrevista a Helena Cabeleira (28 Novembro 2019, Universidade Sénior de Proença-a-Nova)