Naturalidade: Aboboreira (Mação)
Data de nascimento: 1942
Residência actual: Chão de Lopes, Mação
Habilitações literárias / nível de escolaridade: 4ª classe, Colégio de Mação
Entrevista realizada por Helena Cabeleira (gravada em registo áudio e audiovisual), Universidade
Sénior de Mação (21-01-2020)
- Senhor Alfredo diga-me, os anos de escola que tem?
- A 4ª classe feita em Mação. Na época era Colégio de Mação. As outras classes foram feitas na Escola de Aboboreira, que é sede de freguesia. As passagens de classe foram feitas em Aboboreira.
- Veio a Mação fazer o exame. Mas fez o ano da 4ª classe ou foi só o exame?
- Aqui só o exame. A 4ª classe foi feita na Aboboreira.
- Os seus pais que escolaridade tinham?
- O meu pai tinha a 4ª classe. A minha mãe não tenho a certeza, mas se calhar não devia ter…mas sabia ler e escrever.
- Mas não tem a certeza se tinha a 4ª classe. Teria a 3ª? Não sabe se foi à escola?
- Foi à escola. Foi, à escola foi. Porque eram sete irmãos e ela tinha de ficar com a mãe. A minha avó ficou viúva muito nova. E, portanto, de sete irmãos eram quatro raparigas e três rapazes, os irmãos da minha mãe. Portanto, sete. E ficaram órfãos muito novos. E logo a partir daí começaram a trabalhar como era da época e, pronto, chegaram onde puderam. Felizmente toda a gente sobreviveu, à excepção de um que nem sequer conheci. E, pronto, da parte dos meus pais é o que sei dizer. A vida não era fácil. A vida era… se calhar mais vivida em família. Nós éramos quatro irmãos. Ainda estamos vivos dois irmãos e duas irmãs. A vivência na nossa casa era uma maravilha…por influência dos pais.
- Quantos irmãos tem o senhor Alfredo?
- Somos quatro.
- E todos os seus irmãos andaram na escola?
- Sim, sim, toda a gente andou na escola.
- Têm a 4ª classe todos?
- Só a 4ª classe, sim.
- Se os seus pais fossem vivos que idade teriam agora?
- O meu pai nasceu, salvo erro…1907. A minha mãe em 1910. Portanto agora teria 108 ou 109.
- E o senhor Alfredo tem filhos?
- Tenho um filho e uma filha.
- E eles têm estudos?
- Chegaram ao 9º ano e depois não quiseram mais. Quiseram ir trabalhar. Depois a minha filha mais tarde ainda voltou, depois de casada e já com um filho, ainda foi tirar o secretariado da direção. A minha vida foi assim um bocadinho… os meus filhos, no bom sentido da palavra, foram feitos em França e já cá nasceram. Porque, fui para França. Eu vim da Guiné, passei lá anos e tenho uma história muito grande, muito rica. Estive lá até 77. Depois em 77 casei e fui para França com um contrato da Renault. A minha esposa já para lá tinha ido. Solteiros, já namorávamos, já tinha para lá ido com uma carta da chamada dos padrinhos dela para trabalhar, em França. Eu vim em Maio e
conhecemo-nos, e ela já andava a aprender para costureira, ali ao pé da minha casa, na minha terra. As raparigas…era assim: costureira. Eu vim em Maio e ela foi em Agosto para França. Eu, derivado à situação que existia na minha casa, o meu pai estava muito doente e era resineiro, eu tive de ir fazer resina, porque sabia. Enquanto ela foi para França eu fiquei por cá, portanto, ligado aos pinheiros, e a dar apoio à minha mãe, uma vez que o meu pai estava muito mal, e eu tinha uma irmã mais novita e os outros dois irmãos…a minha irmã já estava casada no Castelo e o meu irmão foi logo aos dez anos para Lisboa para os talhos. Os talhos de uns senhores lá da Aboboreira. Portanto, o meu irmão só esteve connosco, comigo, três anos, porque ele tem mais sete anos do que eu. - Teve dar uma ajuda à família?
- Fiquei resineiro, porque andava lá o resineiro, mas mandei o resineiro embora (no bom sentido) e ia eu tomar conta daquilo. E assim foi. As pessoas da família e amigas do meu pai diziam “Oh Alfredo, tu tens de tomar conta disto senão…”, era um prejuízo enorme da resina. E eu, como tinha aprendido mais cedo…
- Então a subsistência da sua família, até mesmo dos seus pais, vinha das resinas?
- Para a época. O que hoje é eucalipto era pinheiro…era uma forma de estar ocupado quase o ano inteiro…porque o pinheiro…
- Havia sempre que fazer, não era?
- Era nove meses por ano. Depois o meu pai no resto do tempo negociava uns cabritinhos, uns leitões, umas coisitas…e mandava para Lisboa para o meu irmão, para os patrões do meu irmão à época, para vender lá nos talhos, era assim. Conclusão, e eu neste verão de 66 escrevi para a Carris, a inscrever-me, escrevi para a Embaixada da França, da Suíça, da Alemanha, de Inglaterra, do Canadá, de todo o lado, porque eu não queria ficar na minha terra. Porque tive lá até ir para a tropa e eu sabia que a vida era dura…
pronto. E eu continuei a resinar. Quanto às respostas, tive resposta de França, que era para onde eu queria ir! A resposta da Carris, fui fazer exames à Carris, ainda estive na Carris umas três semanas, naquele ano de 66 em Novembro por aí assim que foi quando o meu pai faleceu. O meu pai faleceu a 3 de Dezembro de 66. Fiz exames, ficou tudo por ali. Durante a resina e aquilo tudo… fiz exames para França, porque aquilo era muito rigor na época, fui para uma fábrica de automóveis da Renault. - E eram coisas escritas ou eram coisas práticas esses exames para a Carris?
- Aquilo era tudo…como é que hei-de dizer…à base de escrita e de problemas, mas era tudo manual, não havia outra coisa, tudo manual. Havia os ditados, tudo à antiga, mas sobretudo a parte física de cada pessoa. Uma pessoa que tivesse qualquer coisinha era logo posto de lado.
- A robustez física, como se diz, não é?
- Exatamente. Tinha de ser assim. Aliás, eu tive um colega que concorreu para França, e desejoso também para ir, e não foi precisamente porque tinha levado uma golpada na zona do rim. E, pronto…era isso a nível da Carris. A nível de França era mais a parte física, realmente. Eles queriam pessoas para trabalhar. E assim foi. Fui com um contrato de trabalho.
- Para França em 66?
- Por um ano, por um ano com alojamento, com transporte dentro do alojamento, que era um bloco de prédios do tamanho de Mação inteiro, que metia muitos emigrantes espanhóis, italianos, por aí fora. A nossa fábrica tinha onze mil empregados, só naquela fábrica Renault.
- Qual era a zona de França em que estava?
- Era no 78, a norte de Paris. Chamava-se os Invalides em caminho para Calais.
- Já estava aí em contacto com a sua futura mulher, não é?
- Estava a oitenta quilómetros de Paris, portanto aos fins-de-semana ia lá, de comboio. (…) E, portanto, o que custou foi quando o meu pai morre em dezembro e logo a seguir aparece-me o contrato para França. Então e agora a minha mãe e a minha irmã? Os meus irmãos estavam fora. Tem de ser, tem de ser e teve de ser e ponto final. Não havia volta a dar. Estivemos em França, então, quase seis anos. Nasce a minha filha. Eu fui em 67 e a minha filha nasce em agosto de 69, mas a minha mulher veio cá ter a minha filha, esteve cá uns cinco ou seis meses para recuperar, depois foi, e estivemos lá mais não sei quanto tempo. Entretanto começa a aparecer o meu filho e, entretanto, comecei a ter problemas lá, de saúde. (…) Então comecei a meter isto na cabeça à minha mulher. Mas a ela custou-lhe imenso a sair, ainda hoje custa, ainda hoje se lembra dessas
coisas, porque ela gostava muito daquilo (…). Mas viemos então para cá, e nasceu o segundo filho. E pronto, dali fui para Lisboa…as coisas estavam mais ou menos bem encaminhadas. Fui para Lisboa para a Sagres e para a TAP. Eram os dois empregos que eu tinha cá praticamente seguros, garantidos. Quando vim de lá para cá. - Foi para a Sagres trabalhar?
- Sagres. De 70 até 95. Foi sempre a vida de Lisboa. A maioria do tempo foi vivido em São João da Talha. Um dos meus filhos depois andou lá na escola, onde começou a crescer, e ainda lá tem amigos. A minha filha ainda lá reside na zona, tem lá uma agência de viagens…tem a vida estabilizada. O meu filho vive em Braga. (…)
- Que estudos têm os dois?
- A minha filha nasceu em 69, cinquenta anos. E o meu filho tem menos dois, fez, portanto, quarenta e oito, nasceu em 71. Portanto, o meu filho foi para Braga, aliás, foi à tropa. A minha filha entretanto casou e as vidas foram caminhando. O meu filho foi para a tropa…era chofeur (…). A minha filha tem dois filhos, um tem dezasseis anos que é o Tiago e o outro já vinte e quatro para vinte e cinco é o André já está a trabalhar na especialidade…a estudar a parte de tipologia de investigação de análise e essas coisas todas, tanto que ele trabalha num laboratório. Em Braga, portanto, também já tenho um com vinte anos que está a acabar os estudos e o outro que é mais novo.
- Todos estudaram? Os netos, estão todos a seguir estudos, não é?
- Quatro moços. O meu filho tem venda de automóveis. A minha nora é técnica e fotografia, tem lá um laboratório, pronto. A vida está boa.
- Senhor Alfredo, desse ponto em que me contou a história desde os anos 66 para cá, eu quero saber para trás, da sua vida antes de ir para França. Já agora a sua esposa que escola tem? Tem a 4ª classe?
- Tem a 4ª classe. Ela tem menos seis anos do que eu. Ela é de Chão de Lopes.
- Chão de Lopes. Então, o senhor Alfredo veio da Aboboreira e agora vive em Chão de Lopes?
- É. Quando viemos de Lisboa viemos para ali, isso é verdade. (…)
- Tem memórias do primeiro dia de escola? Do primeiro dia em que foi à escola?
- Do primeiro dia não tenho.
- O que é que se lembra quando pensa na escola primária?
- A escola, a escola primária…eu tive uma professora que era uma pessoa muito temperamental, vamos lá.
- Foi sempre a mesma professora na escola primária ou teve várias?
- Sempre, sempre.
- Sempre a mesma?
- Sim, mas ela tinha…hoje, e já há muito tempo, noto que ela tinha razão. Porque nós éramos sessenta alunos na escola, sessenta, aquilo andavam lá sempre cinquenta, sessenta e um, cinquenta,
sessenta ou por aí assim…da 1ª à 4ª classe. E ela era sozinha, não tinha auxiliares. Tratar ali miúdos
uns mais evoluídos do que outros…não era fácil. E depois ela não tinha marido. Tinha uns
cinquenta anos, vivia só. - Mas vivia lá também na Aboboreira?
- Era, acho que era de Ponte Sôr por aí assim.
- Lembra-se do nome da senhora?
- Celeste Rodrigues.
- E essa senhora era professora ou era regente escolar?
- Era senhora professora.
- Quantas aldeias ali à volta iam a essa escola? Era só a Aboboreira ou eram mais?
- A freguesia da Aboboreira tinha esta escola e tinha a de Chão Codes. Aí ia outra professora. Era outra professora, porque ela não tinha tempo. A escola era efetiva, também sempre aberta o ano inteiro, portanto as aulas eram todas em Cão Codes. De resto as outras povoações nenhuma mais tinha escola.
- Então, mas quais eram as localidades em que os meninos dessas localidades iam à Aboboreira à escola?
- Iam de três lados…Casalinho, Louriceira e o Cerro.
- Portanto eram as sessenta crianças.
- Sessenta, sessenta.
- E a escola, como é que era o edifício? Era uma sala, eram duas?
- O edifício era uma casa normal de rés-de-chão. Um salão normal de rés-de-chão, praticamente quadrado. Só uma sala. Tinha uma porta de entrada pequena, um retiro lateral, uma casinha de banho mas era só para ela.
- Só para a professora.
- Eu já vou contar uma história. Portanto, o dia-a-dia…todos nós éramos iguais, no fundo. Todos, assim, descalços. Toda a gente vivia com dificuldade…
- Ia descalço à escola?
- Eu, quando vim fazer a 4ª classe, vim com umas botas emprestadas de um primo meu…para Mação. Mas isto é mais para o fim da história. Eu vou voltar atrás ainda antes desse exame da 4ª que fui fazer. Portanto, era difícil…era tudo uns rotos e descalcitos. Na época, fazia muito frio, muita chuva, muita coisa…mas pronto na nossa casinha, felizmente, nós tínhamos umas hortazitas, tínhamos uns pinhais e não faltava comida, não faltava. Simplesmente, a pior coisa que nós podíamos ter era só haver pão de milho. Não havia outra coisa. Era cozido de semana a semana. Pronto, o tempo foi passando e eu recordo-me lá da escola de dois episódios. Um deles… a professora…a minha mãe era uma pessoa muito, muito, muito, muito atinada e nós tínhamos umas galinhitas, umas cabritinhas, umas ovelhas e aquilo tudo, e a minha mãe de vez em quando ia levar à professora uns ovitos e coisas assim… até para ela, pronto. Hortaliça para ela comer, porque lá não havia praça, não havia nada, era assim. E havia alguma atenção por mim, por parte da professora. E, então, a professora um dia lá entendeu que eu devia alimentar-me melhor. Não sei porquê…a memória…”Diz lá à tua mãe que agora vais começar a trazer todos os dias um ovo cru, uma tigelinha, um bocadinho de açúcar, a colher, um guardanapo, que é para tu depois comeres à tarde”. Só que eu não gramava nada aquilo!
- Gemada? Não gostava?
- Não. Nunca mais. Nem antes gostava…nem leite. Foi coisa que nunca bebi. Bom, eu não
percebia nada de fazer a gemada…ía à casita de banho, tinha lá o lavatóriozito, nem sequer havia água, havia água de baldes, uma coisa assim… - No fundo tinham lá as instalações para a casa de banho, mas não havia?
- Só para ela. Se nós queríamos fazer alguma coisa tínhamos de sair cá fora. Mas já lá chego. Até que um dia, passada uma semana ou duas…de eu não conseguir engolir aquilo…vi lá à porta um amigo meu, o Paulino, que me diz assim: “Oh Alfredo queres que eu te ajude a bater aí a gemada?”. Entretanto lá fui bater aquilo, aquilo lá ficou um bocadito melhor, mas aquilo não passava de ser a mesma coisa, não é? Portanto, ele depois diz-me assim: “Alfredo, vamos fazer uma coisa, vamos partir o ovo e vamos pô-lo na sanita” (risos). Fomos pô-lo na sanita, mas aquilo durou lá três ou quatro dias, e ela lá se apercebeu que havia marosca naquilo…e pronto… levámos uma tareia cada
um, daquelas réguas à moda antiga, não é? Isso foi remédio santo, porque nunca mais houve ovo. O ovo acabou. Outra parte, já talvez na 3ª classe, ou por aí assim…só histórias…nós usávamos bata branca. - No seu tempo usava-se a bata branca?
- Toda a gente.
- Rapazes e raparigas? Eram juntos os rapazes com as raparigas na sala ou eram separados?
- Era, era tudo junto. E, então, um dia na parte da tarde os intestinos pregam uma partida que nessa altura estava cá o assistente e nós tínhamos quatro filas de cadeiras…ele ia assim, percorria as filas, para mandar ir para a rua…e eu: “ai ai ai”…e a professora “não!”…até que lá para a quarta vez, quando fui eu para a rua, já não fui a tempo…Até dois amigos que estavam lá ao lado se afastaram…foi só, teve de ser…
- Estava aflito. Vocês passavam um bocado, não é?
- Ai! E bater…ela batia muito. Aquelas reguadas. Quando fomos então fazer a 4ª classe, eu fui sozinho da Aboboreira, por ser a palavra A…porque fazia falta no grupo de Chão de Codes. Eu fui num dia e no dia seguinte foram os restantes colegas da Aboboreira fazer exame a Mação. Portanto, eu fui num dia com os de Chão de Codes a Mação, fazer o exame da 4ª classe. E no dia seguinte foram os meus colegas da Aboboreira todos juntos. O que é que acontece? Acontece que, pronto, aquilo terminou-se a oral…ia a minha mãe, eu tinha as botas emprestadas lá do meu primo…íamos num burrito.
- Foram num burrito?
- Era o transporte da professora. A professora sempre que ia, pronto…E lá íamos nós. Saí lá da Aboboreira…da Aboboreira a Mação são seis quilómetros.
- Quantos meninos vieram no seu ano?
- A 4ª classe foi só um. Mas eram outros. De Chão de Codes eram onze ou doze criancinhas. Portanto, fizeram a chamada a todos ao mesmo tempo, fomos doze…E de resto da Aboboreira era só eu para a aceitação. Pronto. A professora…lá arrancámos nós, seis quilómetros até Mação. É claro que seis quilómetros leva quase duas horas a andar, hora e meia a andar. Quando lá chegámos, chegámos a Mação, colégio, professora, a minha mãe, o burrito ficou preso lá debaixo de uma árvore. Hora de chamada, entrámos, a professora diz para a minha mãe: “Olha, eu vou ali abaixo já
volto”. Ficou lá a minha mãe à porta da escola onde estavam as outras mães que vinham de Chão de Codes e pronto, o exame correu. - Ah, as mães foram com os filhos ao exame?
- Fora das instalações. (…) A professora diz à minha mãe “Olha, eu vou ali abaixo já volto” e
nunca mais apareceu. - O que é que se passou?
- O exame correu bem. Eu fiquei bem. Ainda me recordo que a redação foi: “A cobra e os
pássaros”. E terminou, terminou tudo. Deram-nos o resultado, pronto, toca a andar, não é? Chegámos ao pé do burrito estava a professora a chorar, tal era o que estava lá dentro…O sistema nervoso a funcionar. É que nem assim a mulher ficou satisfeita. Ela tinha problemas psicológicos, acho eu. Eu não sei avaliar. Sei que a pessoa só deixou de chorar em cima do burrinho…direito à Aboboreira. - Essa senhora que idade tinha nessa altura?
- Cinquenta anos. Era por aí uns cinquenta anos. O que nós não queríamos mais era que ela não nos desse cabo da cabeça, naturalmente, miúdos de sete anos até aos dez. Onze, doze e treze anos.
- Ela era daquelas professoras que levava nas vésperas de exame os alunos lá para casa, os que iam a exame?
- Sim, sim, sim, sim, sim.
- Chegou a estar lá?
- Estive, estive, estive. Isso foi na 4ª classe. Umas duas semanas ou três ou assim, mas para casa dela fomos, mas só que ela tinha a vida dela, coitada. Deixava-nos lá: “Olham façam isto ou façam aquilo”, portanto, aquilo não adiantava nada, porque se não fosse a explicar. E pronto, era assim.
- E depois de vocês fazerem o exame, e de terem passado, faziam alguma coisa? Comemoravam aquilo ou iam para casa? O que é que se fazia?
- Eu não dei por nada. Não dei por nada, pronto, uma vez que fui sozinho. Mas também dos outros não me recordo que houvesse. Não havia nada de paródia, de festas ou coisa assim de especial, não. De maneira que em relação a esta parte a vida continuou…logo aos 10 anos terminou. E portanto era logo ali a dar no duro, porque, então, eu tinha de ajudar a minha mãe.
- Portanto, o Alfredo fez a 4ª classe, fez os anos todos seguidos, portanto nunca reprovou, passou sempre.
- Pois, eu nasci em 52.
- Entrou com sete anos? E depois terminou com doze anos?
- Dez.
- Dez anos. No geral, essa professora, ou a relação que ela tinha lá com os alunos, com os pais e com as famílias, como é que era? Havia uma boa relação?
- Era fria. E aquilo que tenho…como é que hei-de dizer?…Eles eram tantos. Ela queria dar tanta matéria que não conseguia dar tudo. Depois havia lá uns repetentes da 4ª classe, três e quatro anos depois, já traziam barba… Houve lá um deles, tão danado com ela…aquilo também não havia canetas, não havia nada, era o aparo…espetou-lhe o aparo na mão. Revoltado: “Estás-me a bater porquê?”
- Virou-se à professora e espetou-a com o aparo?
- Então pois. Havia lá duas raparigas que tinham mais uns quatro anos do que eu.
- Mas o Alfredo assistiu, assim, a situações em que os alunos se viravam à professora revoltados?
- Sim! Essa situação. E outros batiam-lhe também! Chegava-se a um certo ponto que a malta já maiorzita, com doze ou treze anos, já eram uns homenzinhos…e já não aceitavam. Havia lá duas raparigas, já muito repetentes. Eu cheguei a vê-la…isto é tão real como estarmos aqui…ela pegava nelas pelas tranças e andava com elas à roda no chão. No chão. Pelos braços: “Oh não sei quê…”
- Então os alunos tinham queixas da professora, no fundo.
- Não se podiam queixar em casa. Porque em casa levavam porrada. Não resolvia nada. Porque a época era muito difícil, era muito difícil para todos.
- Senhor Alfredo, depois de ter acabado a 4ª classe alguém o incentivou a continuar os estudos? A professora alguma vez lhe disse…ou quer dizer, houve algum incentivo?
- Não. Não, não, não. Eu também não tive entusiasmo em estudar. Não tinha.
- Mesmo lá em casa a sua família o que é que achava da escola? Se concordavam que os filhos fossem à escola?
- Não havia tempo para isso. A nossa vida em casa era aquilo, logo pequenote tinha duas cabritas.
- Sim, mas no fundo os seus pais eram a favor de que os filhos fossem à escola? E achavam que era uma coisa boa para eles?
- Eram. Com certeza…era obrigatório a toda a gente. Não me recordo que alguém não fosse à escola nesse tempo da minha idade.
- Foram todos, não é?
- Toda a gente ia à escola. Sítios mais longe, lá nas aldeolas se calhar era capaz de haver uma ou outra falha até porque… dois ou três tostões que eu ganhasse já era dinheiro para…
- Para a casa, para ajudar a família. O Senhor Alfredo tem memória do dia-a-dia da escola? Se havia alguma coisa que fizessem todos os dias? Se havia alguma situação…
- Tínhamos brincadeiras. Portanto, bola não havia, havia uma bola de serapilheira, ou uma cabeça de nabo depois de ressequida… jogava-me ao pião, pois, naturalmente à época. Tínhamos um jogo que era a porca russa, com um pau com uma pinha com o chão molhado, descalço.
- Mas dentro da escola…chegava à escola de manhã e o que é que se passava? Entravam em fila na escola?
- Portanto, na escola a gente cantava o hino nacional.
- Cantavam o hino nacional. E rezavam?
- Não me recordo de rezar. Recordo-me do hino nacional.
- E o que é que tinham lá nas paredes da escola?
- Era só o quadro do Marechal Carmona que era o Presidente na época e tinha lá…
- O Salazar, um crucifixo, tinha tudo isso, não?
- Tinha. E tinha uns quadros de santas ou de Nossa Senhora coisa assim…e o quadro de escrever e pronto, não tinha mais nada. Tinha três ou quatro janelas. Tinha mapas também. O mapa de Portugal, sim.
- Outras coisas…objetos, cadeiras? Haviam carteiras para toda a gente?
- Era, era a chamada carteira que tinha o acento pegado, tudo pegado que eram as carteiras antigas.
- Sentavam-se dois a dois?
- Era, aquilo eram dois ou três.
- Não se lembra dos seus colegas de carteira?
- Se me lembro? Então não lembro? Eu recordo-me desse tal dia da porcaria, um deles já faleceu, tinha alcunha “O bispo”. Era a alcunha dele, porque o pai também tinha a alcunha de Vigário e nós, os miúdos, metemos assim. Esse foi quem me foi ajudar quando eu saí da escola a correr, eu saí da escola com aquela coisa toda…foi daqueles que apareceu logo para ajudar.
- Era muito longe a sua casa da escola?
- Não! Eu era um beneficiado. Os que vinham das aldeolas tinham de trazer o comer deles, logo de manhã já chegavam lá todos molhados, porque tinham de andar assim descalcitos…
- Tinham lá aquecimento na escola?
- Não havia nada. Nada! Não havia nada. Portanto, eu da minha casa aquilo eram uns quatrocentos metros, se tanto, da distância da escola para a minha casa. Era pertinho.
- E o horário da escola lembra-se?
- Era das oito e meia, nove horas até às cinco da tarde. Depois tínhamos uma hora de almoço. E pronto.
- Costumava levar merenda? Ou ia a casa comer? Como era assim mais perto.
- A gente podia levar sempre uma bucha, qualquer coisinha, mas a maior parte das vezes a gente queria era ir para a paródia!
- E também faziam aquelas trocas das merendas uns com os outros?
- Isso também se fazia. Aquilo era mais ou menos tudo igual. Só se levava um bocadinho de pão com queijo, uma laranja, uma pêra, uma maçã. Era assim.
- Lembra-se dos materiais da escola? O que é que havia lá, e o que é que levava? Tinha livros, tinha cadernos, tinha o quê?
- Tínhamos, pois, tínhamos o livro.
- Era seu mesmo?
- Aquilo era nosso. Mas eu não tenho bem a certeza, também é verdade.
- Será que era um livro que passou de irmãos para irmãos?
- Pois passava. E era o lápis de pau, era a caneta de tinta permanente. Era o que havia.
- Havia o tinteiro lá na carteira com a tinta?
- Havia os buraquinhos.
- Eram vocês que levavam a tinta ou era dada pela escola?
- Isso era lá da escola. Nós também tínhamos, ainda no tempo da escola, havia uma fase em que nós…mas também não eram todos, é a tal história…aquilo era azedo como tudo, era o óleo de fígado de bacalhau, um fósforo de ferrero.
- Ferrero? O que era?
- Tinha mau gosto…o fósforo de ferrero era um fortificante.
- Um complemento? Mas isso era-vos dado na escola?
- Para a memória. Era dado na escola e era medido pela professora. Não sei se era da Cáritas ou do próprio Estado.
- Não sabe quem é que ia fornecer isso, mas era dado na escola não era em casa?
- Era dado dentro da escola.
- E era quantos dias por semana? Era todos os dias?
- Sei lá, mas parece-me que era todos os dias. Era sempre.
- Todos os dias. E foi durante todos os anos que andou na escola?
- Não, não, não. Foi quando era mais necessário, ou quando ela entendia lá que era assim.
- Isso foi mais no início da sua escola primária ou mais nos anos em que já estava quase a terminar?
- Já mais para o fim, porque era um fortificante lá para a memória ou coisa assim. Nunca foi muito falado, mas pronto. E foi assim. Depois também tivemos a catequese, fiz parte também lá do nosso clube, na época quem não fosse à missa e à catequese já não era bom filho. Mas fazia parte, porque aquilo na época era…
- Não guardou nada desse tempo da escola? Um cadernito, uma lousa, um livro, uma fotografia?
- É como eu digo, eu se tiver posso entregar. Tenho lá documentos da minha carta de bicicleta. (…)
- Disse que a escola era mista, andavam rapazes e raparigas, mas não havia separações nenhumas nas brincadeiras? No recreio, era tudo junto?
- Nada, nada…
- E também me disse que era tudo mais ou menos…descalcitos. Não havia discrepância entre meninos que fossem mais ricos ou mais pobres, que fossem mais bem tratados pela professora ou que fossem menos bem tratados?
- Às vezes era capaz de ser, sei lá. Não havia, não havia que eu me recorde assim…nada. Era capaz de haver uma ou outra que era posta de parte ou apanhada de ponta, mas não tinha nada a ver com…
- E era pelo comportamento?
- Pois, precisamente por causa disso, mais pelo comportamento.
- Costumavam lá na escola celebrar estas coisas que agora são comuns: Natal, Carnaval, Páscoa?
- Sempre houve um sinalzito do Natal, mas não havia prendas.
- Faziam árvore de Natal ou não? Presépio?
- Não. Nada, nada. Disso nada. Apenas se falava lá na redação qualquer coisa a falar sobre aquelas histórias.
- E quando vinham as férias? O que é que acontecia quando a escola fechava para férias?
- Então, íamos para o trabalhito. Então, pois. Assim como era ao fim-de-semana. Tínhamos três ovelhitas, duas cabras e uma ovelha e ainda me lembro dos nomes: a Caiada, a Castanha e a Manjoua…uma ovelha. Viviam juntas com o meu burrito. Só havia assim a separação de uma cancela ligeira, mas era tudo da mesma palharia, encostados à nossa casa mesmo, mesmo encostado à casa. Aquilo era família autêntica, os bichitos eram família. E, portanto, assim que comecei a andar: “Alfredo, vai lá buscar…abrir as cabritas”, porque aquilo era tudo mansito, ninguém lhe batia, ninguém lhe fazia mal. O meu burrito era a mesma coisa, punha-me em cima dele de pé e ia dar-lhe água lá a um fontanário que havia mais acima onde havia um depósito, e ia lá quando era
preciso, não havia água em casa, não havia casa de banho. Havia a água dos fontanários na rua. Punha-me em cima do burrito, assim nas ancas, sem albarda, sem coisa nenhuma e já sabia o que tinha a fazer, não é? Ia beber água, voltava para trás. Eu vivi estas coisas muito, muito ricas, muito ricas mesmo. - No geral, ali na sua aldeia, acha que as pessoas valorizavam a escola, achavam que era uma coisa importante? Existe ainda lá uma escola? Tem lá uma professora?
- À época sim.
- Ou havia pessoas que eram contra?
- Não, não, não.
- No geral as pessoas achavam que era bom?
- Até porque a professora era um marco, assim como o regedor, o padre. Era…como se diz no dito: “Quem vai ali? Não é ninguém, é um soldado….”. E, praticamente aqui… hoje em dia não é que não haja o sentido do respeito, de saber quem vai ali…mas se calhar não se liga tanto. Naquele tempo as autoridades eram pessoas de…
- O que é que o Alfredo gostava mais quando andava na escola? A disciplina? O português, a matemática, a aritmética?
- Não queria nada disso…
- A história?
- Não queria nada disso.
- Então o que é que queria?
- Problemas e mais problemas, eram só problemas, redações. Eu não percebia nada de fazer desenhos, não percebia nada daquilo.
- Mas faziam desenhos na escola?
- Era inventar a Batalha, era desenhar coisas assim do género.
- Costumavam desenhar lá? A professora fazia exercícios com desenhos, era?
- Sim, sim.
- Olhe, não há nenhuma história que tenha ficado na sua cabeça…para além daquelas que já contou? Uma peripécia nas aulas, ou uma história de um livro que tenha alguma vez ficado na sua memória?
- Se calhar é melhor ficarmos assim. Eu vou rabiscar melhor. Depois eu escrevo.
- Está bem. Está bem.
- Depois eu escrevo.
- Diga-me só uma coisa. Depois acabou a escola primária, não é? Com os dez anos ficou aqui a
trabalhar ou saiu de cá? - Eu fiquei com os meus pais. Até ir para a tropa.
- Até ir para a tropa. E na tropa foi para onde? Onde é que esteve?
- Eu estive nos primeiros seis meses na zona de Leiria e Caldas da Rainha a preparação, e estive na Guiné.
- Esteve na Guiné. E passou lá o tempo da tropa, foi quanto tempo o serviço militar?
- Lá foi dois anos. No total foram trinta meses…e acabou em 4 anos, de 63 a 66. Isso é uma história muito bonita, muito forte e muito rica também…o Ultramar. (…) E quem é que paga a vida dos nossos camaradas, que lá estivemos, que foram 12 anos ou 13 anos? (…)
- Obrigada senhor Alfredo…pense lá é se tem alguma fotografia sua daquele tempo, ou com o edifico da escola, ou com a professora…ou quando concluiu o exame da 4ª classe.
- A escola ainda lá está. É a Junta de Freguesia. É o que lá está…agora quando foi da junção das juntas…é a sede.